terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Poema do Pacheco

Lá fora
neva.
De branco as ruas transportam
quem passa
esquecendo-se sempre da memória
dos que já passaram
em dias
de sem neve.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Ser português para o melhor e, claramente, para o pior

Apesar do tasco não ter qualquer referência a Portugal excepto o óbvio galão ou o menos óbvio mazagran no menú, as pessoas lá vão descobrindo que sou português. Regra geral essa maravilhosa revelação surge depois de me perguntarem embevecidos se sou francês e de lançarem um desapontado "ah" quando lhes revelo que sou, afinal, português.
Contudo houve uma mais subtil revelação ao ser identificado com a lusa nacionalidade depois da descoberta de uma frase do Mia que para ali tenho a jeito de prescrição médica onde se revela que o mundo é aquilo que acontece e não aquilo que é.  Espanto! Maior ainda sendo que a descoberta veio de uma germânica criatura.
Mas o grande espanto (peço humildemente perdão, mas acordei apaixonado por esta palavra) é mesmo quando me surgem portugueses porta adentro vociferando em bom tom sobre a minha possível lusitanidade. Nunca escondendo um certo desconforto e surpresa, lá vou respondendo timidamente às questões que me vão colocando. Sim, sou scalabita. Estou em Hamburgo há coisa de um ano. Pois, o tempo realmente é um pouco assim que para o merdoso.
No outro dia entraram porta dentro um casal dos seus quase quarenta anos a perguntarem se era português. Agradecendo ao divino o facto de estar o tasco vazio respondi que sim. O que se seguiu foi belo e digno de registo:
" Pois, o Pacheco tinha-me dito que isto aqui era um café português, mas como não vi bandeira nenhuma lá fora, pensei que se tinha enganado. Além do mais com estas letras turcas (referindo-se à reprodução da assinatura do Kafka que foram desrespeitosamente aproveitadas para fazer o logo do tasco) e o caralho pensei mesmo que não era. Porque é não vende Natas? Eu se fosse a si punha aqui uma camisola da selecção nacional aqui mesmo na janela para toda a gente ver. Ou vai-me dizer que não é português? Eu aqui não mando, mas se fosse a si era isso mesmo que fazia. Toma! E mudava o nome para uma coisa portuguesa. E vende vinho verde? O quê? Quinta da Aveleda? Que é lá isso? Casal Garcia é que é bom e que os alemães conhecem! E sopa de feijão, faz? E não me diga que não vai aqui passar os jogos da selecção quando for o mundial! Mas olhe que tem que arranjar aí uma televisão como deve ser! Essa aí é piquena! E porque não está a ouvir música portuguesa? Olhe que assim acho que não vai longe!"
Quando finalmente abandonaram aqui o tasco, ponderei seriamente em tirar o galão do menú e começar a vender apenas Riesling e outras especialidades vinícolas alemãs. 

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Ritmo de aprendizagem

"I don't do it for the marks, (...) I do it for the enjoyment." Alice Munro

Boa, boa, pensei! Aqui está uma citação nobelizada a provar que é possível estudar-se apenas pelo prazer de se saber mais. Mesmo aquilo que me vinha a calhar para introduzir numa discussão sobre o ritmo germânico de vida que, mais que qualquer outra coisa, é um ritmo financeiro.
Optimizar é, por definição, uma das palavras que mais tenho ouvido e à qual maior referência estas germânicas gentes fazem. Desde a mais tenra idade que  são incitados a ser melhores do que o semelhante de forma a conseguirem vingar numa sociedade que lentamente se tem vindo a tornar implacável.
Tudo bem até um certo ponto. Acredito piamente que há sempre espaço para a aprendizagem contínua e que essa mesma aprendizagem nos conduzirá a melhores e mais civilizados tempos. Contudo, creio que não é isso que tem vindo a acontecer. Este ritmo e competitividade visam, no meu parecer míope, causar o efeito contrário acabando sempre inevitavelmente por se traduzir nas mais pequenas coisas da vida como o atropelar para se entrar no autocarro ou o passar à frente de velhotas com dificuldades na fila do supermercado.
A palavra prazer tem vindo lentamente a ser retirada ou banalizada como algo obsoleto e que não se encaixa numa vida optimizada. Como diria uma contadora de estórias que por aqui tem vindo a passar: os alemães típicos calculam quatro horas de tempo livre por dia. Sendo um número tão reduzido de tempo livre, não hesitam em programar uma hora para actividade física, uma para aprender algo mais que os poderá fazer destacar em relação aos colegas de trabalho, uma para jantar e uma outra para se divertirem. Mas apenas uma. Com início e fim bem demarcados. E é bom que seja bem aproveitada.
Na louca correria por se conseguir cada vez mais sinto que estamos terrivelmente a tornar-nos cada vez menos pessoas.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

As ilhas alemãs

Em conversa com o mais visitador dos vizinhos o termo "ilhas" acabou por ser cunhado para definir a nova geração de alemães.
Como qualquer boa sociedade desenvolvida, o culto do eu e do individualismo foi elevado a um alto nível de consumo onde cada um sabe perfeitamente o que quer, evitando-se ao máximo o humano contacto de se ser aconselhado (e outros).
A possibilidade de se ter exactamente aquilo que se quer entregue em casa e na maioria dos casos sem custos adicionados, faz com que haja quase tantos serviços de entrega de comida ao domicílio quanto adeptos do Nacional da Madeira. A empresa de entregas DHL tem uma carrinha a tempo inteiro apenas para a rua onde se encontra o tasco ( a rua terá, talvez, a extensão da Avenida da Liberdade em Lisboa), para além das outras que fazem serviços "extraordinários". Claro está que há mais uma boa meia dúzia de outras empresas que dia após dia percorrem a rua de pacotes na mão. A fim de manter o nível competitivo a que todos ambicionamos e que fazem da Alemanha uma das mais fortes economias mundiais, estes funcionários não têm direito a salário fixo, mas a uma comissão por cada pacote entregue.
Durante um tempo aceitei receber os pacotes das pessoas que não estavam em casa aqui no tasco. A média diária era de cerca de 10 pacotes e as pessoas que os vinham levantar costumavam-me tratar como servente e não como um simpático vizinho que aceitou o pacote evitando-lhes a chatice de fazerem quase dois quilómetros para o irem levantar.  Escusado será dizer que já não aceito mais encomendas aqui.
A filha do supracitado vizinho abriu uma pequena livraria num dos mais fascinantes museus de Hamburgo e viu-se obrigada a fechar a partir do momento em que se recusou começar a vender pela internet. Na realidade, a capacidade dos alemães se deixarem surpreender ao entrarem numa livraria/biblioteca e deixar que um livro lhes surja à frente como algo apetecível e inesperado encontra-se reduzida a uns meros resistentes, quase todos da velha guarda.
Confesso que no outro dia, e pela primeira vez desde que aqui estou, entrei na biblioteca directamente ao local onde estava uma versão espanhola de O Cemitério de Praga do Eco. Já o tinha visto na minha anterior visita, mas um certo bom senso da minha capacidade leitora vs tempo fez com que adiasse a sua leitura por uma semana. Decidido avancei sem temor e ao chegar ao local que tinha mentalmente definido na minha cabeça dei com um espaço vazio. O desnorteio que se seguiu foi tal que cheguei a requisitar Alice Munro em espanhol, mesmo havendo uma versão em inglês disponível. Ri-me de mim mesmo, respirei fundo e deixei-me vaguear de novo pelas prateleiras recolhendo aquilo que me foi caindo à frente e me pareceu maduro, assim evitando a minha germanização.
Na biblioteca da Universidade não há contacto directo com os livros sendo que estes têm que ser pré-requisitados e levantados num prazo de oito dias ou assim.
Antes de terminar o café, o vizinho repetiu profeticamente o seu temor de que nos venhamos a tornar numa sociedade de ilhas onde cada um sabe cada vez mais o que quer, sabendo assim cada vez menos.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Da universalidade da arte

Nos tempos em que o Botequim ficava mesmo ali à esquina da minha casa, lembro-me de por diversas vezes me ter apiedado dos novos donos pois toda a dinâmica cultural do sítio parecia sempre ser um convite inequívoco à exposição do brilhantismo intelectual de toda uma panóplia de loucos que sempre apareciam a fim de dominar as atenções.
Claro está que a memória da falecida Natália Correia também aparecia e o nome dela era evocado mais do que o de Cristo no decorrer de uma missa. Entre os loucos havia poetas, declamadores natos, pintores, compositores e outros artistas que sempre se incluíam no grupo dos sem definição.
Entre todas as pragas que podem atormentar um negócio esta poderá ser uma das piores. O limite entre a simpatia, a paciência e o bem estar social dos restantes clientes é algo, a meu ver, ténue e difícil de definir.
Tendo agora um tasco onde sessões de contos, leituras, tertúlias literárias, música ao vivo, exposições e toda uma série de actividades são possíveis, claro está que também já por cá apareceram os loucos.Chegam como quem não quer a coisa e ao fim de trinta segundos afirmam que são génios em potência  Desde uma multi-artista plural (se bem percebi o que ela disse entre gargalhadas de puro delírio) ao escritor deprimido depois da primeira revisão que lhe fizeram à escrita (e portanto sem nenhum livro publicado) também por aqui há uma variada oferta de loucos a julgarem que são artistas (não confundir com artistas loucos que é lugar comum completamente diferente).
Que bom é saber que isto a artística loucura é algo de universal que une os povos tanto ou mais do que as uniões económicas e/ou monetárias.