sexta-feira, 14 de julho de 2017

Saramago

Hoje choveu em Hamburgo.
Mesmo estando oficialmente mergulhado no Verão, não é esta novidade merecedora de abertura de telejornais ou de portadas de jornais. Nem mesmo dos locais.
Contudo isso acarretou consigo a minha solene decisão de deixar a minha fiel bicicleta na cave e apanhar o metro. Ao entrar na carruagem fortemente grafitada fui recebido por um grupo de pessoas tão cinzentonas quanto o tempo. Como sempre faço, optei por me sentar num dos poucos lugares onde ninguém tinha os olhos pregados no telemóvel e dispus-me a prosseguir com a minha intensa leitura do Autostopper do Franz Hohler. à minha frente estava sentado um senhor na casa dos setenta, com o planalto central da cabeça calvo, fazendo-me lembrar o meu pai. Sorri levemente ao me confrontar com a semelhança.
O rosto, esse, não deixava de me ser familiar mas não prestei inicialmente muita atenção pois com isto de andar por aí a contar estórias às vezes tenho a sensação de conhecer toda e qualquer pessoa com que me cruze.
A voz automatizada anuncia a próxima estação: Sternschanze. Curioso para ver se ainda há resquícios da jornada de violência que assolou a cidade no passado fim de semana, interrompi a leitura e espreitei pela janela. O meu vizinho da frente também espreitava de forma melancólica pela janela e aí me apercebi de quem tinha à frente.
Não, não pode ser, pensei de forma tão abismada que temo mesmo que me tenham saído alguns murmúrios pelos meus lábios cerrados. À minha frente estava nada mais nada menos que o Saramago!
Sim, eu sei que já morreu. 2010. Lembro-me perfeitamente do dia em que a notícia me atingiu que nem uma pedra ao abrir o Público. De como nem trinta minutos tinham passado quando o Gonçalo me ligou a dizer se já sabia e de como ficámos os dois mudos durante uns bons minutos após termos sussurrado em uníssono um "Foda-se puto..."
Mas para mim não havia dúvidas. Ali, tão perto, num cenário tão improvável, estava o Saramago.
Não escondendo o meu assombro e, porque não, desconforto, comecei a pensar no que lhe poderia dizer.
Seguiu-se Dammtor. A passagem pela Kennedybrucke com vista para o Alster. Hauptbahnhof.
O meu destino de jovem cumpridor com o seu trabalho accionou todos os sensores comunicando-me que tinha que sair.
Num turbilhão de emoções e pensamentos tentei formular algo inteligente para lhe dizer.
As portas abriram-se. Pessoas começaram a empurrar-se para saírem. Pessoas esperavam para entrar. Tentei fitá-lo com o meu olhar e quando, num lapso de tempo os nossos olhares se confrontaram, sorri tentando criar cumplicidade ibérica e aí saiu qualquer coisa:
- Sem que não é do seu agrado, mas amanhã voltará a chover em Hamburgo.
Não posso jurar, mas creio que me sorriu.
E eu, contrariando a multidão que sempre habita a Estação Central de Hamburgo, abandonei o metro de sorriso estampado no rosto.

Sem comentários:

Enviar um comentário